A segunda proposta de DCV consistia na elaboração de composições tipográficas a partir de poemas de Fernando Pessoa.
Mais concretamente, o objectivo era criar uma composição diferente para cada um dos seus heterónimos (Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos), tendo por base pequenos excertos dos seus poemas que seria, posteriormente, trabalhados consoante a nossa interpretação.
Além dos poemas, deveríamos utilizar igualmente um texto de aproximadamente vinte e quatro linhas, cuja função era complementar a nossa composição, dar forma ao conceito que pretendíamos representar e, por isso, não precisava sequer de ser legível.
Assim:
A primeira composição que elaborámos foi a respectiva a Alberto Caeiro, utilizando, para tal, o seguinte poema, além das restantes vinte e quatro linhas:
Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem,
Que traçam linhas de coisa a coisa,
Que põem letreiros com nomes nas árvores absolutamente reais,
E desenham paralelos de latitude e longitude
Sobre a própria terra inocente e mais verde e florida do que isso!
Alberto Caeiro
Destaca-se que era obrigatório incluir o nome do autor na composição tipográfica.
Alberto Caeiro, heterónimo criado por Fernando Pessoa, é considerado o Mestre Ingénuo dos heterónimos e do próprio criador, apesar, de todos eles, ter si do o único a receber somente a educação básica.
Caeiro é um poeta ligado à natureza, um poeta que despreza e repreende qualquer tipo de sentimento filosófico, afirmando que pensar obstrui a visão ("pensar é estar doente dos olhos"). Para o poeta o importante é apreender o mundo através dos sentidos, sobretudo da visão, pois só assim se obtém o conhecimento, nunca através do pensamento, porque o mundo não se fez para pensarmos nele.
Afirma que, ao pensar, entramos num mundo complexo e problemático onde tudo é incerto e obscuro (“pensar incomoda como andar à chuva”).
É na natureza que Caeiro considera que os sentidos podem ser mais amplamente explorados, porque a natureza surge associada ao isolamento, à “ausência de gente”, aos animais que não pensam, portanto, a tudo o que é genuíno.
Assim, apresenta-se como um simples "guardador de rebanhos", cujas ovelhas são sensações, e a quem só importa ver a realidade de forma objectiva e natural. É um poeta de completa simplicidade, considerando que a sensação é a única realidade.
Foi, então, com base no poema e nalgumas destas características que definem Alberto Caeiro, e servindo-nos do software informático Free Hand, que criámos a nossa composição, cujo resultado final foi o seguinte:
Numa primeira visão, esta composição pretende retratar a dificuldade que os espaços naturais enfrentam face à crescente urbanização, sendo que a cidade está associada às “almas humanas” que, dado o stress do dia-a-dia, sentem necessidade de organizarem tudo à sua volta, categorizando tudo o que de mais espontâneo possa existir e delimitando ao máximo todos os espaços, esquecendo-se de viver livremente, genuinamente.
A natureza, por sua vez, com todos os seus elementos remete para a simplicidade, para a inocência e espontaneidade.
Assim, nesta composição, pretendia-se criar uma certa comparação entre estes dois mundos, acentuando o desequilíbrio entre os mesmos pela própria forma dos objectos retratados.
Como os primeiros versos do poema dizem respeito às tais “almas humanas”, decidimos que uma boa forma de as caracterizar seria através de uma cidade e, por isso, “construímos” um conjunto de prédios completamente verticais para representar a seriedade com que as pessoas vivem as suas vidas e que o autor critica no seu texto. Além desta verticalidade, associámos à cidade cores mais escuras, mais pesadas, ou seja, menos divertidas como preto e vários tons de cinzento.
Escrevemos nestes prédios: “Tristes das almas humanas”.
As primeiras duas palavras surgem no topo de dois dos prédios construídos.
A palavra almas, por sua vez, dá forma aos próprios edifícios, sendo a essência da cidade. Nesta palavra destaca-se a letra S que surge como um raio de sol mais extenso.
Quanto à palavra humanas, pretendia-se que estas simbolizassem a presença de pessoas nas suas habitações, e por isso, escolhemos a cor amarela para as letras que a compõem, representando a luz das janelas acesas, varandas, etc… No fundo, pretendia-se criar um ambiente humano, contrapondo-o à natureza. No que respeita à escolha dos tipos de letra, esta foi bastante variada, no entanto, recaiu principalmente sobre letras não muito estilizadas, algumas arredondadas para servirem de janelas. Algumas letras foram alteradas, quase desenhadas, por nós para se transformarem em edifícios ou parte destes, e, por isso, não se pode dizer que pertençam a um tipo de letra específico. Outras letras foram procuradas mais pela sua forma do que pelo tipo a que pertence, com vista a cumprirem objectivos específicos, como é o caso da letra L e a letra N que foram utilizadas como portas nestes edifícios.
Analisando agora a parte inferior desta composição tipográfica, esta remete-nos para a natureza, com a presença de elementos como uma árvore, uma flor, relva, uma rocha…
A árvore pode ser considerada o elemento central desta composição. No seu tronco e ramos estão escritos os seguintes versos: “Que traçam linhas de coisa a coisa,/Que põem letreiros com nomes nas árvores absolutamente reais,/E desenham paralelos de latitude e longitude/Sobre a própria terra inocente.”
Salienta-se que a árvore foi desenhada ligeiramente inclinada não só para contrariar a verticalidade associada aos edifícios, e explicitada anteriormente, mas também para representar a quase extinção da natureza num mundo cada vez mais industrializado, assim a árvore parece estar quase a morrer.
Quase, mas não totalmente. Ainda há uma réstia de esperança e, por isso, nesta parte da composição surgem cores mais vivas, mais alegres, passando-se gradualmente do castanho para o verde-claro e até azul, que compõe as pétalas da flor, exceptuando-se o cinzento que dá forma à rocha.
Em relação aos tipos de letras utilizados, a escolha ainda foi mais variada nesta parte da composição, sendo que algumas palavras são constituídas por vários tipos de letra distintos. Os tipos de letra utilizados foram pensados mais em função da forma que se pretendia atribuir a cada palavra como é exemplo o caso da flor constituída pela palavra florida ou da rocha. Há também variações em relação ao tamanho das letras para conferir mais dinâmica à composição.
Quanto ao tipo de letra, é importante ainda destacar os C’s utilizados para contornar a própria, cumprindo assim um objectivo específico, à semelhança do que ocorrera com as portas dos edifícios.
O nome do autor (Alberto Caeiro) foi inserido na parte superior da composição, dando forma a três aves e uma nuvem.
Em suma, nesta composição o principal objectivo foi representar a oposição entre a natureza, associada à genuinidade e simplicidade, e a cidade que, com as suas “almas humanas”, parece ter uma necessidade intrínseca de complicar o que já é naturalmente simples.
A segunda composição por nós elaborada referia-se a Ricardo Reis, outro dos heterónimos de Fernando Pessoa.
Nesta composição, à semelhança da anterior, tínhamos também de partir obrigatoriamente do seguinte excerto de um poema, podendo usar ainda as 24 linhas de texto para complementar o trabalho:
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim – à beira rio,
Pagã triste e com flores no regaço.
Ricardo Reis
Ricardo Reis foi imaginado de relance por Fernando Pessoa, mas nem por isso a sua obra se apresenta menos complexa do que a dos outros dois heterónimos.
Reis é dos três o mais calmo, o mais pacífico. Aprecia a serenidade das coisas e aceita que a vida passa consoante o que está destinado, sem que os homens possam fazer seja o que for para o alterar, assim como o rio sempre corre até ao mar, como refere num dos seus poemas.
Para o poeta, a única certeza é a morte, e sabendo que esta chegará quer queiramos, quer não, advoga que devemos viver a vida sem grandes preocupações, nem lamentações, mas sim de uma forma equilibrada, buscando sempre a paz e a tranquilidade.
Neste sentido, é um epicurista e um estóico, porque não questiona a fatalidade das coisas, não teme a morte e procura o prazer simplicidade da vida, sempre sem preocupações, olhando a realidade de uma forma apática, procurando evitar a dor e, por isso, não exagerando, não se entregando a nenhuma emoção, nem nenhum sentimento, pois só a liberdade emocional lhe permitirá alcançar a tal paz de espírito que procura.
Ricardo Reis é um homem puro, não gosta de excessos. Não ama exageradamente, não sofre exageradamente… não vive exageradamente, porque a vida é efémera e o que quer que façamos nunca será eterno.
Quando se apercebe que assim só alcança ilusões de sentimentos, Reis cai num epicurismo triste, devido a um purismo exagerado… ele, o poeta que nunca comete excessos.
Como refere Fernando Pessoa:
Pus em Reis a minha disciplina vestida da música que lhe é própria.
Reis escreve melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado.
Fernando Pessoa
Partindo de algumas destas características, e utilizando o Free Hand, a nossa composição final é a seguinte:
De uma forma geral, pretendia-se retratar a fugacidade da vida e, simultaneamente, os pequenos prazeres da mesma.
Neste sentido, optámos por desenhar um rio no qual incluímos parte do excerto obrigatório (Lembrando-te assim à beira rio). Este rio é a base da composição.
Foram utilizados três tipos de azul, sendo que o mais forte se aplicou justamente ao fragmento de texto que pretendíamos destacar.
Quanto aos tipos de letra, procurámos letras simples, não muito estilizadas, mas que, de uma forma subtil, parecessem manuscritas. A maior parte do texto tem um tamanho de letra reduzido, para conferir um certo volume ao rio, e, na parte superior do mesmo, a forma que as palavras descrevem sugere a ondulação da água.
Salienta-se que a palavra rio surge como ligação entre dois excertos, um dos quais, não fazendo parte do poema obrigatório, é, de certo modo, importante, uma vez que demonstra a referida fugacidade e efemeridade da vida. O facto de o texto que está na base deste rio se apresentar de uma forma horizontal, sem qualquer tipo de ondulação, pretende demonstrar que apesar de por vezes o rio, como metáfora para a vida, parecer estar parado, não quer dizer que deixe de correr em direcção ao mar, daí a ondulação apenas presente na parte superior.
Na parte superior da composição inclui-se o restante excerto: Ser-me-ás suave à memória… pagã triste e com flores no regaço, dando forma a uma flor, que simboliza a pagã triste e os pequenos prazeres da vida que Ricardo Reis tanto aprecia.
A flor está posicionada sobre o rio, como se se pudesse afogar, sendo, depois, apenas suave à memória do poeta.
Esta parte da composição apresenta outros tipos de cores como amarelo, verde, vermelho, cores mais alegres que compõem a flor e representam os tais simples prazeres, mas também preto, justamente no núcleo da mesma, remetendo para algum sentimento do qual restará somente uma vaga memória suave.
No que respeita aos tipos de letra utilizados, estes são igualmente simples, não parecendo tão manuscritos. São simples, como são simples as tais coisas que, na óptica do poeta, devemos apreciar.
Quanto ao tamanho das letras, as que constituem o núcleo são ligeiramente maiores do que as que dão forma às pétalas, o que confere um certo dinamismo à própria flor.
O nome do autor, que também era obrigatório incluir na composição, aparece no canto superior esquerdo da mesma. Foram utilizadas letras maiores e de cor preta, um pouco mais trabalhadas do que as restantes. A base de algumas letras foi como que “puxada” para baixo, visando representar a tal fugacidade da vida, uma vez que nada fica como está e como se o próprio poeta fosse também ele “puxado” da apatia em que vive.
Assim se descreve e interpreta a nossa composição tipográfica relativa ao excerto do poema de Ricardo Reis.
A terceira composição dizia a respeito ao heterónimo Álvaro de Campos.
Álvaro de Campos é um dos heterónimos mais conhecidos de Fernando Pessoa.
Entre todos os heterónimos, foi o único a manifestar fases poéticas diferentes ao longo de sua obra, falando-se em três fases distintas: a decadentista, a sensacionista e a intimista.
Na primeira fase, decadentista, influenciado pelo simbolismo, exprime o tédio, o cansaço e a necessidade de novas sensações. Nesta fase, o poeta sente falta de um sentido para a vida e uma necessidade de fugir à monotonia.
A fase senacionista, também chamada de futurista, é bastante influenciada por Walt Whitman e Marinetti e caracteriza-se por pela celebração do triunfo da máquina como símbolo da civilização moderna. Campos apresenta a beleza da força da máquina por oposição à beleza tradicionalmente concebida e exalta o progresso técnico, daí a designação futurista.
Quanto ao sensacionismo, este revela-se na vivência excessiva das sensações e na linguagem eufórica e jactante presente em vários poemas.
A terceira fase, a intimista surge depois de uma serie de desilusões com a própria vida e traz de volta o abatimento que se traduz num cansaço extremo. O poeta sente-se vazio, incompreendido, um marginal e expressa o seu sofrimento e as suas angústias. Nos seus poemas destacam-se a solidão interior, a incapacidade de amar, a descrença em relação a tudo, a nostalgia da infância, a dor de ser lúcido, a oposição entre o sonho e a realidade.
Campos é um heterónimo complexo e inconstante, cuja obra está patente esta e evolução.
À semelhança das outras composições, também tínhamos de partir obrigatoriamente do seguinte excerto, podendo ainda utilizar 24 linhas de texto para complementar o trabalho:
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Álvaro de Campos
Partindo das características acima referenciadas, nesta composição procurámos retratar a modernidade das cidades e a força da máquina que Álvaro de Campos tanto exalta na fase futurista.
Assim, decidimos representar uma fábrica no lado esquerdo da composição, como símbolo da industrialização. Para tal, utilizámos um tipo de letra pouco estilizado e de cor preta, moldando um bloco de texto em forma de edifício.
Com as restantes linhas de texto complementar decidimos preencher o fundo com poemas de Campos, utilizando uma fonte manuscrita e optando por cores fortes como o azul e o verde que reforçam a linguagem eufórica presente na obra futurista.
Utilizámos também parte das vinte e quatro linhas para escrever a frase “tumulto disciplinado das fábricas”, no lado esquerdo da composição, logo acima da fábrica, como se fosse o fumo que saía desta. Utilizámos a cor cinzenta que representa justamente o fumo e moldámos as letras tentando criar a sensação de fúria e força.
Quanto ao poema propriamente dito, este ocupa a parte inferior esquerda da composição. Utilizámos o preto como cor das máquinas, mas também o azul, o vermelho e o amarelo e procurámos destacar cada palavra individualmente, mas essencialmente as palavras “forte”, “espasmo”, “fúria” à qual atribuímos a cor vermelha e o nome do heterónimo.
A parte do poema “r-r-r-r-r-r-r eterno!” serviu de moldura à própria composição, utilizando um tipo de letra maiúsculo, simples e de cor preta.
Assim se resume a nossa interpretação tipográfica do excerto da Ode Triunfal de Álvaro de Campos.